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Anhangá e o Rio do Mau Espírito

Este conto de fantasia faz parte da quarta edição do projeto “Em um mês, um conto”





Parte 1


São Paulo - Século XVI


“Rios e matas, passarela da ilusão, muitas são as máscaras do desfile de assombração. Caçador, muito cuidado com o que irás caçar, se for branco, veado, é melhor não atirar.” (autor desconhecido)
“Se de seus olhos afogueados nem lhe deite um olhar, pois é alma do outro lado, é o encantado Anhangá. Se quiseres boa caça, faz à ele um agrado: na ponta de uma vara, deixa um pouco de tabaco, os fósforos e a mortalha, para que faça seu cigarro. Anhangá quando fuma, deixa de assoviar, caçador vai à caça, foi o trato com Anhangá.” (Autoria coletiva da TDB - Tradição Diânica do Brasil)

Por tantos dias e noites, que nunca fui capaz de contar, apenas de sentir, reinei por essas terras. Todos temiam o Anhangá, o grande veado branco de olhos afogueados. Me tinham como um demônio, um espírito ruim, mas sem sombra de dúvidas, fui um igual, um índio antigo e poderoso, cujo espírito imortal escolheu proteger as matas e os animais.

Nasci na colina mais alta entre os rios Anhangabaú e Tamanduateí, ali era o meu lugar, onde aprendi a amar, onde Tupã me escolheu para eternizar. Eu podia metamorfosear qualquer animal e homem, podia entrar em suas cabeças e bagunçar seus pensamentos, era só olhar em meus olhos de fogo para endoidar.


Tive minha história, tive meus sonhos e desejos, mas optei por algo maior, maior que o ego que nos alimenta e que qualquer desejo mundano. Eu podia ser o que quisesse, fui o temido espírito maligno das matas, o índio calado que ninguém conhecia e que ajudou a levantar as ocas de tantas tribos, o índio que amou os que já não podiam ser amados, fui aquele que segurou as mãos dos agonizantes e desprendeu suas almas do corpo inerte para que pudessem adentrar no infinito. Fui o índio forte que lutou bravamente ao lado dos guerreiros de uma tribo massacrada pelos brancos.


Então, chegou o dia em que vi meu povo penar. Nossas terras tão amadas, de nós foram tomadas e devastadas, todo índio que respirava foi escravizado, ninguém foi poupado, nem velho nem criança e quem se rebelava, sucumbia na ponta do chicote ou varado de bala, tudo que eu podia fazer era ajeitar em meus braços suas almas aturdidas e lhes ensinar a povoar as estrelas.


Tudo nos foi tirado, nosso riso, nosso viver e nosso pensar, até nossa fé foi desacreditada, quando no alto da colina impuseram o seu rezar. De nós só sobraram as memórias. Tudo o que eu via era dor e medo e hoje tudo que me rodeia é cinza e frio, como uma cidade de pedra, um labirinto de almas perdidas.


O dia em que fui derrotado está gravado em mim como ferro quente marcando a pele.


Era madrugada, eu bebia a água refrescante do rio, quando os guerreiros começaram a lutar. Seus gritos de guerra preenchiam todos os cantos da mata. A batalha era sangrenta. A morte pairava acima de suas cabeças com as garras afiadas, eles sabiam que não venceriam, que cairiam, mas não sem lutar, se iam de encontro à morte o fariam com honras e não com covardia.


Mas o que me atraiu como um imã foi o lamento da índia mais bela e forte daquele lugar, sua voz doce e melodiosa implorou por mim. Eu a conhecia da época em que meus pés pisavam firme nesse chão, da época em que fui temido por disparar as flechas mais rápidas e certeiras, da época em que unia meu corpo ao dela e dava continuidade a nossa gente.


Sua missão foi diferente da minha, ela escolheu ser ventre de nossa raça e eu escolhi ser imortal. Ainda assim, por vezes, cada vez que ela se vestia de um corpo diferente, eu sentia saudade, sentia que havia parado no tempo, pois nela tudo se renovava, ela aprendia, se mutava e evoluía.


Velozmente me embrenhei na mata até alcançá-la, ela estava de joelhos, mãos prostradas a reverenciar os deuses. Ironicamente lamentava por outro, seu novo companheiro, o outro laço de sua alma. Ele era o guerreiro da tribo que arquitetara o ataque aos brancos.


Me aproximei, ergui o focinho para o alto e exalei o ar impregnado do cheiro metálico de sangue. Prostrei-me ao seu lado, sua mão deslizou trêmula entre os pelos brancos. As lágrimas banhavam seu rosto impiedosamente como as águas do rio em tempos de cheia.


— Eles precisam de você, Anhangá, você precisa lutar! — justificou ela, devolvendo o olhar.


Tomei a forma do índio que fui e que sempre seria e me ajoelhei de frente para ela, toquei seu rosto vagarosamente, na vã tentativa de guardar a textura de sua pele e absorver o calor do seu toque misturado ao meu, quis beijá-la, mas isso a assustaria e pior, a afastaria de mim. Seu desejo não era pelo meu corpo, era pela minha força.


— Você sabe que isso terá um preço, não sabe? — indaguei, para lembrá-la de quem eu era e de que tudo envolvia troca, não era só dar, era necessário receber.


— Tudo que você quiser, Anhangá. Faço tudo que você quiser — prometeu inocentemente, sem saber que eu também era vulnerável, contra as armas que cuspiam fogo, bicho encantado não era capaz de triunfar.


— Um dia você terá que nos libertar — anunciei, decretando a sentença que selaria nossos destinos e que calaria a minha voz por milhares de anos.


Nenhum guerreiro sobreviveu ao massacre brutal, nossos corpos foram jogados no rio Anhangabaú e levados pela correnteza, nosso sangue inocente, nossa raiva, nossa dor, nossa sede de vingança impregnou todo o lugar, de tempos em tempos, meu assobio volta para assombrar.


Ninguém sabia que minha maior fraqueza era a forma humana e que quando se mata o Anhangá uma maldição aprisiona o lugar.


A sabedoria de um povo pode ser esquecida, pode até ser perdida, cada vez que a roda faz o mundo girar, o presente se torna passado, uns morrem e outros nascem e as marcas que deixamos no mundo se fundem, se perdem, se tornam as próprias engrenagens. Fui esquecido, mas ainda posso afirmar que a maldição um dia vai se quebrar.



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Olá, que bom ver você por aqui!

Sou Luna Halder, autora do livro Todas as Possibilidades do Amor.
Aqui você encontrará tudo sobre meu trabalho e tudo que vai na minha mente e no meu coração.
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