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Anhangá e o Rio do Mau Espírito

Este conto de fantasia faz parte da quarta edição do projeto “Em um mês, um conto”



Parte 2



São Paulo - Dias Atuais


Ouço o assobio longo e agudo como um lamento, antes mesmo de inspirar aquele cheiro tão característico do centro da cidade, que fica impregnado no asfalto, cheiro de sujeira e urina velha, de abandono e tristeza, agora misturado com o cheiro ferroso e ocre de sangue, cheiro de morte.


Uma neblina inexplicável cobre todo o Vale do Anhangabaú e seus arredores, a polícia tentou isolar o perímetro, mas é impossível delimitar com precisão a linha que nos separa do desconhecido.


Minha avó dizia que cada pedacinho de chão nesse mundo tem sua própria memória. O cheiro que perdura no ar mesmo depois da terra abafar os despojos, as vozes sussurradas, os gritos de lamentos e acusações que passeiam pelo vento, os segredos guardados a sete chaves que tentam a todo custo se libertar, pequenas partes de história que encontram uma maneira de fincar suas raízes nos cantos escuros e sombrios dos lugares que um dia foram um lar e ali pacientemente esperam a hora de despertar.


O centro de São Paulo sempre teve a fama de carregar em seus alicerces uma memória pesada, de tempos em tempos acontece alguma tragédia, incêndios, mortes trágicas e acidentes inexplicáveis, o que prova que ali, o mal fez morada.

A energia que emana por todo o lugar tem algo de antigo, algo que foi esquecido, mas que nem por isso, deixou de se fortalecer, ela invade minha alma, fazendo com que um desassossego perfure meu coração e afaste minha paz.


Essa noite nebulosa vem se repetindo há mais de quinhentos anos, desde que os portugueses invadiram e tomaram como suas, as terras indígenas, sempre na mesma data, deixando seu rastro de morte. As autoridades nunca revelaram nada, para não causar pânico entre a população, eu queria muito acreditar que eles se preocupavam realmente com cada um de nós, mas para mim só estavam protegendo seus próprios interesses.


Sou investigadora da polícia civil, filha do atual Secretário de Segurança Pública e minha missão é bem clara: deter o mal que vem aterrorizando o centro de São Paulo.


Olho para o outro lado, onde a noite está clara e vislumbro a lua cheia brilhante no céu e rogo para que o horror que irei enfrentar não me faça duvidar da minha fé e que ela me ajude a encontrar o caminho de volta.


Com uma das mãos seguro a arma com firmeza e com a outra tiro de dentro da blusa o distintivo e o colar de penas que vovó Ana me deu quando meu dom se manifestou e o aperto com força entre os dedos, foi tudo que restou da história dos nossos antepassados, do cocar do bravo guerreiro indígena que perdeu sua vida na luta pelos ideais de nosso povo.


Eu e os vários policiais designados para o caso, passamos o cerco, adentrando a neblina. Dentro dela, enxergamos tudo com clareza, a impressão que tenho é a de ter entrado em um portal, numa redoma mágica que reivindicou para si aquela parte do centro.


Por todo o percurso, encontramos um rastro de corpos e sangue, aqueles que não estão mortos, parecem enlouquecidos, gritam coisas sem nexo, machucam o próprio corpo, outros correm a esmo, desesperados, sem ter a menor noção de para onde ir.


Um canto forte misturado com batidas de lanças no asfalto, no estilo kararaô, o grito de guerra dos índios, permeia o ar.


E lá, bem no meio do Vale do Anhangabaú, cercado por prédios históricos, encontra-se uma criatura mística, que exala poder e medo. Um índio alto, com cabelos longos, o corpo todo desenhado, os braços levantados ao alto, ostentando tacape e arco, nas costas descansam as flechas.


Eu sei o que ele é.


Antigamente o Vale do Anhangabaú foi uma terra indígena e recebeu esse nome devido ao Rio Anhangabaú, o Rio do Mau Espírito na língua tupi. Os pajés orientavam as tribos a não beber e nem se banhar nas águas do rio, pois o lugar era habitado pelo Anhangá, uma terrível criatura que protegia as matas e os animais que ali viviam.


Os policiais apontam suas armas na direção dele. O índio enorme se vira para nós devagar, seu rosto está pintado com sangue e os olhos brilham como as labaredas do fogo prestes a lamber e devastar o que tocar.


— Meu Deus! O que é isso, Uyara? — pergunta Edú, o policial que está ao meu lado.


— É o Anhangá!


Alguns policiais ficam agitados, quando a criatura começa a caminhar em nossa direção, jogam as armas no chão e se ajoelham como se sentissem a dor mais excruciante do mundo e outros correm berrando de terror.


— Não olhem para os olhos dele — grito, para os que ainda não sucumbiram ao encantamento do Anhangá e puxo Edú para trás de mim, grudando minhas costas na dele.


Anhangá para a poucos passos de mim, vira a cabeça de lado e fareja o ar, o brilho de seu olhar diminuindo de intensidade.


— Até que enfim você chegou. Já estava cansado de esperar — diz ele, cravando os olhos nos meus.


Os policiais disparam balas que nunca chegam até ele e fogem em busca de encontro aos seus medos mais íntimos.


A criatura mágica estende a mão, ele parece me reconhecer, sabe do meu dom, confia em mim.


— Uyara, o que está fazendo — indaga Edú, ao notar o movimento do meu corpo.


— Fique de olhos fechados, preciso descobrir o que ele quer — respondo e seguro a mão do Anhangá entre as minhas.


Sou transportada para as profundezas de seu espírito, ouço e vejo com clareza, numa sintonia perfeita, que só eu sou capaz de encontrar. Vejo o que ele era e o que se tornou, os longos anos aprisionado em um lugar que não reconhece mais como seu. Vejo a luta que o enfraqueceu, ouço os disparos das balas que profanaram sua pele, os gritos de dor e derrota, o lamento e a súplica que o tempo não foi capaz de calar. A maldição que muitos não são capazes de acreditar. O cheiro de pólvora faz meu nariz arder. Sinto as lágrimas de um povo, do meu povo, a lavar a face sofrida. O retumbar de uma promessa que precisa finalmente ser cumprida.


Solto sua mão, coração acelerado no peito.


— Você vai ajudar?

— Claro que vou, mas antes preciso que pare com essa matança — advirto.


— Impossível, eu não tenho controle sobre a maldição, ela é quem me conduz. Nos liberte e tudo isso acabará. Você tem pouco tempo, se apresse — assegura o Anhangá que sai andando até sumir de vista num passe de mágica.


— Pode abrir os olhos, Edú — digo, verificando apressada a hora no celular.


— O que vamos fazer?


— Vamos acabar com a maldição. Só temos até a meia-noite. Se prepara vamos ter que cavar.

Puxo Edú e saímos correndo em direção à Avenida 23 de Maio, embaixo dela corre o que restou do Rio Anhangabaú, o Rio do Mau Espírito.


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Olá, que bom ver você por aqui!

Sou Luna Halder, autora do livro Todas as Possibilidades do Amor.
Aqui você encontrará tudo sobre meu trabalho e tudo que vai na minha mente e no meu coração.
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