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Anhangá e o Rio do Mau Espírito

Este conto de fantasia faz parte da quarta edição do projeto “Em um mês, um conto”



Parte 3 (Final)


Paro abruptamente tentando organizar as ideias. Preciso deixar a adrenalina baixar. Correr desenfreadamente até uma avenida movimentada com trânsito pesado, não vai ajudar em nada. Não tenho como quebrar o asfalto e perfurar o solo até encontrar o veio do rio que um dia existiu ali.

Preciso de um plano!


Eu só tenho essas poucas horas para quebrar a maldição.

Meu Deus! Quantas maldições eu já quebrei até hoje? Não posso falhar.


Usar meu dom para descobrir um assassino e fazer justiça, entrar na cabeça das pessoas e ver seus atos mais obscuros e secretos, é fácil, eu só preciso tocá-las, só preciso olhar em seus olhos e capturar a imensidão de suas almas.


Mas a missão que tenho aqui é muito maior e impactante, preciso livrar o centro de São Paulo de uma maldição, de uma noite de mortes e ao mesmo tempo libertar o Anhangá das amarras que o envolveram nesta prisão há tantos séculos.

Se eu falhar, só terei outra chance daqui um ano. Para funcionar, a maldição tem que ser quebrada nessa data e não em outro dia qualquer.


Como deitar a cabeça no travesseiro sabendo que no subterrâneo da cidade em que vivo, uma criatura poderosa amarga seu momento de liberdade, se vingando da injustiça que lhe impuseram? Não poderei esperar que outra neblina paire sobre o centro da cidade e leve mais vidas inocentes. Tenho que acabar com isso hoje. E já sei por onde caminhar.


Eduardo, o único policial que não sucumbiu ao encanto do Anhangá, espera quieto ao meu lado. Ele sabe como trabalho, que preciso de alguns segundos em silêncio para pôr em ordem as visões.


Voltamos a seguir, só que dessa vez nosso ritmo é mais calmo, poupando a energia que iremos precisar para mais tarde. Toda essa parte do centro continua sob o efeito da neblina, assim não encontramos empecilhos ao entrar na Galeria Prestes Maia que liga a Praça do Patriarca ao metrô Anhangabaú, vamos poupar tempo e entrar na passagem subterrânea que existe no metrô, ela está fechada há anos, sem nunca perder sua grandiosidade e memória, suas galerias já receberam mostras de artistas famosos e abrigaram a primeira escada rolante pública da cidade.


Edú atira contra os pesados cadeados que deveriam guardar o lugar e entramos pelas portas com as placas de Proibido, a parte em que estamos da galeria é enorme e escura, mas os olhos de fogo do Anhangá nos guia até a Escultura Graça I, aquela da mulher com as mãos espalmadas e abertas ao lado do corpo.


Seguro nas mãos da escultura com força até ouvirmos um clique e ela se move devagar abrindo uma passagem no chão da galeria, há uma escada rudimentar feita de qualquer maneira na terra avermelhada, um calafrio percorre meu corpo, nunca antes adentrei tão fundo em minhas visões.


Com as lanternas do celular descemos devagar os degraus precários, a terra é escorregadia e bolorenta, saímos num enorme túnel cheio de teias de aranhas, com forte cheiro de terra molhada e a passagem do tempo. O Anhangá vai nos mostrando a direção a seguir, o problema é que quanto mais nos afastamos da entrada, a passagem vai se apertando, até se tornar um espaço por onde mal cabe um braço, parece ter ocorrido um tipo de desmoronamento, para podermos passar, vamos abrindo um buraco com as próprias mãos. Nossa sorte é que a terra não está compactada, facilitando a abertura.


Edú passa primeiro e depois me ajuda a pular. Ouvimos barulho de água e um canto triste de pés arrastados que se alterna com a batida fraca de lanças no chão, o canto fúnebre dos indígenas.


Caminhamos guiados apenas pelas vozes e pelo que elas despertam em nós, ao virarmos num caminho que quebra para a direita encontramos uma grande concentração de água, não chega a ser um rio ou um lago, parece mais uma enorme poça de água que foi se acumulando ao longo das eras, sete índios com suas lanças de guerreiros nas mãos homenageiam os mortos, cantam para si mesmos.


Anhangá solta sua flecha mais bonita, ornamentada com penas raras, num dos cantos do enorme túnel, onde a água com o movimento brusco ondula, se chocando contra a parede de terra. É lá que preciso olhar.


A água está morna e não passa das nossas canelas. Amontoados naquele canto, encontramos os restos mortais dos nobres guerreiros que um dia lutaram pelos ideais de sua tribo.


— Eles nos jogaram de qualquer maneira no Rio do Mau Espírito, não permitiram uma despedida. Quando assumo a minha forma humana, perco muito poder, por isso eles conseguiram nos aprisionar aqui. Ano após ano, tudo que podíamos fazer era gritar nossa raiva, nossa indignação, mas só aquela que me fez lutar poderia nos libertar. Você demorou, sua raça se misturou, quase perdi as esperanças, mas finalmente você chegou, diferente deles, com o poder de enxergar além do que os olhos podem ver — assegura Anhangá, as lágrimas apagando o fogo dos seus olhos, o tornando tão mortal quanto nós.


— Sinto muito! — Balbucio, deixando a emoção me levar.

Retiramos os ossos da água, deixando-os descansar na parte mais seca do lugar.


— O progresso cobra seu preço, tudo que conhecíamos mudou, tudo virou labirinto de pedra. A colina onde nasci, o rio onde me banhei e matei a sede, onde conheci a outra parte de você, não existe mais. Depois de tanta escavação, de tanto mexer nas direções, o que sobrou de nós ficou escondido aqui. Sem sol, sem lua, sem ar, só o lamento a nos consolar. Choraram por nós, mas o tempo apagou as nossas marcas, ninguém encontrou — revelou o triste Anhangá.


Deixo meu pranto se derramar, não por dó, mas por notar o quanto a ganância e essa disputa de poder sem limites, nos faz pequenos na imensidão do mundo.


Cada índio se ajoelha e agradece, nos presenteiam com as pontas de suas lanças, com as penas de seus cocares. Entre eles há um guerreiro mais calado, seus olhos não tem fogo, mas tem um brilho intenso, que reconheço como amor. Ele se ajoelha, beija minhas mãos com seus lábios, com suas lágrimas, com seu toque reverente. Depois tira seu cocar dos longos cabelos negros e me entrega. As penas são iguais às que ornamentam o meu colar. Sem dúvida, partilhamos do mesmo sangue, do mesmo eco do tempo, ele era parte de mim e eu era parte dele.


Anhangá me entrega seu tacape, seu arco e flecha, pinta meu rosto com a tinta feita de terra e água.


— Esses presentes vão te ajudar em sua longa caminhada, eles tem magia, a magia do nosso povo, a magia do mundo. Lute sempre pela justiça da sua gente.


Não íamos conseguir carregar todos aqueles ossos para fora, tão pouco poderíamos entregá-los às autoridades, tínhamos que devolvê-los ao mundo, para que repousassem e se misturassem com a poeira de Deus, então o Anhangá solta o fogo do seu âmago sobre o que sobrara dos bravos guerreiros.


Edú tira a jaqueta, a abre no chão batido, acomodamos as cinzas bem no meio dela, fazemos uma trouxa e a carregamos com cuidado. Mais uma vez fomos conduzidos pelo calor dos olhos do Anhangá. E do alto do Viaduto do Chá as jogamos para o mundo, elas dançam embaladas pelo vento, formam lindos pássaros no ar.


Vó Ana me contou que quando um índio morre, um passarinho sai de dentro do seu peito e que quando ele alça voo, sua alma está livre finalmente.


O Anhangá transforma-se num lindo veado com chifres exuberantes, rodopia ao nosso redor, junta-se aos pássaros no céu e os guia rumo às estrelas.


Meu coração se alegra por ter aberto a gaiola e libertado seus espíritos.


Era o fim da maldição do Anhangá e do Rio do Mau Espírito.



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Olá, que bom ver você por aqui!

Sou Luna Halder, autora do livro Todas as Possibilidades do Amor.
Aqui você encontrará tudo sobre meu trabalho e tudo que vai na minha mente e no meu coração.
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